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Contribuição de Federico Pita ao PSOL+20: “Bloco histórico negro: política da emancipação”

Por Federico Pita, Fundador da Diáspora Africana de la Argentina (DIAFAR). Ativista antirracista afroargentino.

Na Nossa América, “negro” quase sempre foi um nome que chega de fora e de cima. Uma etiqueta colonial para classificar, reduzir e administrar populações. Uma palavra carregada de hierarquias raciais, um marcador de servidão e de espoliação. No entanto, nas mãos de quem a recebe como estigma, essa palavra pode ser invertida, reapropriada e convertida em eixo de poder. Pode deixar de ser um rótulo de subalternidade para transformar-se em nome próprio de um projeto político.

Esse projeto não é menor; em chave gramsciana, trata-se da possibilidade de que “negro” funcione como articulador de um novo bloco histórico, unindo estrutura econômica, superestrutura cultural e direção política em torno de uma pretensão genuína de universalidade. Não uma universalidade que absorva e homologue, mas uma que reconheça a pluralidade como princípio organizador.

A noção de bloco histórico em Antonio Gramsci nos ajuda a pensar esse desafio. Para ele, não se deve separar a base material —relações de produção, propriedade, controle de recursos— da superestrutura —Estado, leis, instituições, cultura, religião, educação—. Ambas formam uma unidade orgânica: o bloco histórico. Quando esse bloco se sustenta, é porque a classe dirigente não apenas domina pela força, mas governa também pelo consenso, produzindo uma hegemonia que apresenta seus interesses particulares como se fossem os de toda a sociedade. A história, contudo, conhece rupturas: momentos em que esse consenso se rompe e abre-se a possibilidade de reorganizar o bloco sob outras alianças, outras ideias e outras bases materiais.

Nossa América foi laboratório dessa máquina: repúblicas que se proclamavam “de iguais”, enquanto naturalizavam, por um lado, o branqueamento como destino civilizatório e, por outro, uma gramática nacional que confundia cidadão com europeu, progresso com substituição, pertencimento com apagamento. A isso quero chamar hoje de bloco histórico negro: um projeto contra-hegemônico com pretensão de universalidade, capaz de desarmar as hierarquias do mundo que herdamos e propor uma humanidade mais ampla que a inventada pela colonialidade.

É nesse ponto que a genealogia política da categoria negro oferece uma lição poderosa.

Haiti 1805: a universalização radical de “negro”

A Revolução Haitiana (1791–1804), além de ser a primeira insurreição vitoriosa de pessoas escravizadas na modernidade, foi também o primeiro desafio real à ordem racial do mundo atlântico. Sob a liderança de Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines e outros, não se conquistou simplesmente a independência da França, mas se destruiu a própria base da economia colonial escravista.

Em 1805, a Constituição haitiana proclamou que todos os cidadãos seriam chamados “negros”, independentemente da cor da pele ou ascendência. Esse gesto, que pode parecer simbólico, era, na realidade, profundamente material e estratégico. Invertia o signo da palavra que, no mundo colonial, equivalia a propriedade alheia. Transformava o marcador racial de inferioridade em categoria universal de cidadania e pertencimento nacional.

Em chave gramsciana, o Haiti tentou fundar um novo bloco histórico pós-colonial, no qual “negro” já não designava uma casta escravizada, mas a comunidade política inteira. Era uma forma de blindar a nação contra as divisões raciais herdadas do regime colonial, que a França havia utilizado para impedir a unidade dos oprimidos. A universalização de “negro” não era retórica, era um ato de soberania que buscava produzir hegemonia interna e resistir à pressão externa de um mundo que não concebia uma república negra como parte da humanidade civilizada.

Negritude: o contra-ataque cultural

Mais de um século depois, no Paris do período entre guerras, um grupo de estudantes e escritores africanos e caribenhos —entre eles Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor e Léon-Gontran Damas— fundaram o movimento da Negritude. Não se tratava apenas de um movimento literário, ainda que a poesia tenha sido seu veículo. Tratava-se de uma intervenção direta na superestrutura cultural da metrópole colonial.

A Negritude partia de uma constatação: o colonialismo, além de explorar o trabalho e a terra, aniquila as memórias, as línguas, os valores e as formas de vida dos povos colonizados. Césaire disse isso com crueza em seu Discurso sobre o colonialismo: a Europa não trouxe civilização, mas barbárie. Diante da “morte cultural” induzida, a Negritude propunha um retorno às fontes africanas de dignidade, não para se encerrar em um passado idealizado, mas para construir uma subjetividade capaz de enfrentar-se de igual para igual no plano político.

A Negritude operou como luta pela hegemonia no terreno das ideias, um esforço por desmontar o senso comum colonial e substituí-lo por outro, no qual o negro não fosse déficit, mas riqueza civilizatória. Foi uma semeadura cultural que alimentou, décadas depois, as lutas políticas e militares pela independência na África e no Caribe.

Poder Negro: a autonomia como estratégia

No coração do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, Stokely Carmichael (Kwame Ture) e outros dirigentes do SNCC cunharam, nos anos 1960, a consigna de Black Power. Não era apenas um slogan, mas uma ruptura com a estratégia dominante de integração simbólica em um sistema que seguia sendo materialmente racista.

O Poder Negro propunha que as comunidades negras construíssem suas próprias lideranças políticas, controlassem seus recursos, se defendessem da violência policial e definissem suas prioridades sem intermediários brancos. O Black Panther Party levou essas ideias a um nível organizativo que incluía programas de alimentação, clínicas comunitárias, educação política e alianças internacionais com movimentos anticoloniais.

Aqui, “negro” deixa de ser apenas uma identidade cultural e se converte em categoria política que articula consciência racial com controle material do território e dos meios de vida. Em chave gramsciana, trata-se da disputa direta pela direção do bloco histórico, não apenas no plano da ideologia, mas também na estrutura econômica e na correlação de forças institucionais.

Consciência Negra: a libertação começa dentro

Na África do Sul do apartheid, Steve Biko entendeu que não bastava desmontar as leis racistas se as pessoas negras continuassem se vendo com os olhos do opressor. Seu movimento de Consciência Negra colocou a ênfase na emancipação psicológica como condição para a luta política.

Para Biko e seus companheiros, a opressão racial operava tanto pela coerção quanto pelo consenso. A hegemonia branca havia conseguido que muitos africanos e africanas naturalizassem sua subalternidade como inferioridade. A tarefa urgente era romper esse consenso interiorizado, recuperar o orgulho e a autoestima e criar espaços onde o negro fosse vivido como positivo e emancipador. O movimento de Consciência Negra é um exemplo claro, em termos gramscianos, de batalha pelo senso comum: a disputa de hegemonia não se dá apenas no parlamento ou na imprensa, mas também na subjetividade cotidiana dos oprimidos.

O humano como campo de batalha

Nessa genealogia, a crítica de Sylvia Wynter acrescenta uma camada decisiva. Wynter nos adverte que o “universal humano” proclamado pelo Ocidente é, na realidade, uma ficção histórica: a figura particular do Man —branco, masculino, proprietário, racional— que a modernidade colonial elevou como medida de todas as coisas. Esse modelo definiu quem podia ser reconhecido como humano e quem ficava de fora, justificando escravidão, colonização e genocídios.

Assim, amplas maiorias foram colocadas fora da humanidade plena ou aceitas como “quase humanas” (sob a condição de imitar o modelo). Se o bloco histórico dominante se ergue sobre essa antropologia restrita, disputar hegemonia é mais que pedir uma cadeira à mesa, é redesenhar a mesa. E mais do que “ser incorporados” ao Man, trata-se de superá-lo. Disputar sua hegemonia implica também disputar o que entendemos por “humano”. No entanto, Wynter não propõe substituir um modelo por outro, mas abrir o campo a uma pluralidade de formas de ser e de viver que não girem em torno de um centro único.

É aqui que entra negro como significante estratégico com potência universal —não um universal que homologa, mas um que abre. Negro não é cor de pele; é o nome político de quem foi feito prescindível para que outros fossem indispensáveis. A reapropriação do negro tem sido uma maneira de redefinir o humano a partir da experiência de quem foi expulso dele. Mas não para se encerrar no particular, e sim para universalizar desde outro lugar. A pretensão de universalidade que emerge desse percurso é genuína porque não busca absorver diferenças, mas articulá-las. É uma aliança antes que uma essência; uma forma de reconhecimento mútuo entre aqueles que sofrem a racialização do trabalho, da vida e da morte. “Negro” articula estrutura e superestrutura, economia e desejo, instituição e bairro, arquivo e canção. Devolve inteligibilidade (como funciona a dominação) e direção (para onde nos movermos para desmontá-la).

Rumo a um bloco histórico negro

Pensar “negro” como eixo de um novo bloco histórico é reconhecer que o sistema-mundo moderno/colonial articulou sua hegemonia em torno de uma divisão racial do trabalho e da vida, e que somente uma aliança que coloque no centro aqueles que esse sistema relegou poderá desmontá-lo.

Isso não é um apêndice setorial do progressismo; é a condição de possibilidade de um novo bloco histórico. Porque, se a hegemonia vigente se ergueu sobre a ficção do Man, nosso projeto se ergue sobre a verdade simples e radical de Wynter: a humanidade é uma tarefa. E essa tarefa começa onde o universal europeu fracassou, nos corpos que nomeou como descartáveis. Daí sua pretensão de universalidade genuína. Não reclama privilégio, reclama amplitude; não pede permissão para entrar no mundo, propõe outro mundo que nos contenha. É um projeto universal que busca substituir a hegemonia atual —fundada na supremacia branca e ocidental— por outra baseada na pluralidade real do humano.

Na América Latina, onde a narrativa nacional mestiça e branqueadora apagou sistematicamente a presença e o legado das populações afrodescendentes, originárias e racializadas, esse horizonte exige uma ruptura com o contrato racial que organiza nossas repúblicas desde o século XIX.

Universalidade negra

A genealogia que vai do Haiti a Wynter, passando por Césaire, Carmichael e Biko, nos mostra que negro pode ser o nome de um universal distinto. Um que nasce da experiência compartilhada de desumanização, mas que não se esgota nela; um que propõe um horizonte onde a dignidade e o pertencimento não dependam de parecer-se com o modelo europeu.

Esse universal não é adorno moral, é a base para construir hegemonia. Implica produzir um senso comum no qual o racismo não seja um problema “das minorias”, mas uma estrutura incompatível com qualquer democracia real. Implica que o negro deixe de ser pensado como “identidade” e seja assumido como projeto de mundo.

A humanidade que queremos fundar não será a restauração de uma suposta harmonia prévia à modernidade, será uma invenção política que reconheça a diferença sem hierarquizá-la. Esse é o coração de um bloco histórico negro: não a substituição de um senhor por outro, mas o fim da necessidade de senhores. Negro não encerra, convoca. Não apaga diferenças, organiza-as em comum. É a palavra que reúne aqueles que já não aceitam viver em um mundo que precisa da miséria de muitos para a comodidade de poucos. É o nome de uma política que não negocia sua humanidade nem a põe à cotação no mercado da tolerância. É, sobretudo, uma bússola: aponta que a tarefa não é administrar o presente, mas fundar.

Se um dia nos perguntarem quando tudo começou, diremos: começou quando deixamos de esperar o reconhecimento do senhor e passamos a nos reconhecer mutuamente. Quando transformamos a ferida em método, o método em organização e a organização em destino. Nesse dia, negro já não será acusação; será a forma mais honesta e mais ampla de dizer humanidade.

*Texto apresentado no evento “Desafios para a esquerda no século XXI”, no marco da série de debates do PSOL+20, processo de atualização programática do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). 15 de agosto de 2025, Auditório do SINTEPE, Recife, Pernambuco, Brasil.

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