Originalmente publicado em Yahoo Notícias
Historiador e mestre em história pela Universidade de Brasília (UNB), Juliano Medeiros é uma das mais importantes jovens lideranças da esquerda brasileira. Em entrevista ao Yahoo Notícias ele falou sobre seu trabalho à frente do PSOL, a visão do partido em relação a temas como a reforma da previdência, política indígena e reforma agrária.
Ele também relembrou o período em que acompanhou de perto a atuação do atual presidente na Câmara dos Deputados –quando era coordenador da liderança do PSOL– e de suas impressões sobre o parlamentar Jair Bolsonaro. Leia a entrevista na íntegra:
Yahoo Notícias: Em um cenário completamente marcado pelo conservadorismo, o PSOL cresceu bastante de 2018 para cá. A que o senhor credita isso?
Juliano Medeiros: Vivemos uma crise política no país de grandes proporções. A própria vitória do Jair Bolsonaro é um exemplo disso. Expressa uma rejeição aos velhos partidos e velhos políticos de sempre. Embora o Bolsonaro seja um representante dessa velha política ele conseguiu se vender como algo novo na última eleição. O PSOL embora exista há quase 15 anos conseguiu ser o repositório da confiança das pessoas que buscam uma alternativa de esquerda que não esteja marcada pelos erros e conciliação com a direita dos partidos de centro-esquerda que estiveram no poder. Nesse sentido se pode ver o PSOL se fortalecendo em um polo que também não se identifica com a velha política e com os velhos políticos. E isso se reverteu também em crescimento eleitoral do PSOL.
Yahoo Notícias: O que é essa nova política? O que é velha política?
Juliano Medeiros: Como política velha eu descreveria aqueles partidos e lideranças que têm como horizonte a mera administração da ordem política, econômica e social do Brasil. Esses partidos que querem só administrar o sistema. E nesse campo eu incluo os partidos de centro-esquerda, de direita e de extrema direita. Já a nova política é aquela que vai além dos limites que a ordem impõe. É a política que busca travar com a sociedade e as instituições a luta para que o Brasil supere de fato as desigualdades de emprego e renda que marcam a nossa história. A nova política é governar e fazer política com quem está nas ruas. Mobilizado. E rejeitar esse arranjo do toma-lá-dá-cá. Para gente isso é a nova política. Não me parece que essas pessoas que reivindicam o rótulo da nova política estejam dispostas a ir além do que o horizonte da ordem política no Brasil impõe. Ao contrário, boa parte de quem fala de nova política seja no bolsonarismo ou nessas startups suprapartidárias que se formaram falam de nova política defendendo revoluções cosméticas. Isso não me parece nova política embora seja um rótulo muito sedutor.
Yahoo Notícias: Uma das principais críticas em relação ao atual governo é o de promover um clima ininterrupto de eleição. Como o senhor enxerga isso?
Juliano Medeiros: De fato. O governo Bolsonaro aposta na polarização. É importante verificar que essa polarização não é uma invenção do Bolsonaro. Ele não criou isso. Ela é produto de uma agenda política que vem sendo implementada não só pelo bolsonarismo, mas também por uma série de partidos de direita e extrema-direita de ataques aos direitos sociais, a soberania nacional e a democracia. Quando o partido derrotado nas eleições decidiu defender o impeachment da Dilma se apostou na polarização. Quando o Temer implementa uma agenda derrotada nas urnas acirra polarização. Quando vence o presidente que tem como centro de sua agenda polarizar em cima das questões culturais e de costumes isso acirra polarização. O Bolsonaro não criou a polarização. Ele é produto da polarização. E ele alimenta a polarização. Nós do PSOL não acreditamos que a saída seja somente criar uma via de diálogo. Existem setores da política brasileira que não é possível ter diálogo. E o bolsonarismo é um exemplo. Então acredito que essa conjuntura de polarização tende a continuar nos próximos anos.
Yahoo Notícias: Na última eleição o PSOL teve a chapa presidencial encabeçada por Guilherme Boulos e por uma liderança indígena. A senhora Sônia Guajajara. Como o partido avalia a política indígena do governo Bolsonaro?
Juliano Medeiros: É um desastre né. O governo do Bolsonaro quer regredir 50 anos naquilo que se avançou no Brasil naquilo que se avançou no Brasil graças a luta dos povos indígenas e dos setores democráticos. O plano do Bolsonaro é abrir as reservas indígenas para garantir a exploração predatória dos recursos minerais que existem nessas terras. Não por acaso que o movimento indígena liderado pelo Sônia Guajajara e pelo cacique Raoni estão denunciando isso no mundo inteiro. A Sônia Guajajara inclusive irá fazer um giro pela Europa em 20 países denunciando os ataques do Bolsonaro em relação não só a política indígena, mas também à política ambiental. O tema da reforma agrária também é bem importante. Recentemente foi demitido o presidente do Incra e no lugar dele foi colocado um ruralista que não tem o menor compromisso com a reforma agrária. Esses são alguns dos setores mais emblemáticos em que o governo do Bolsonaro mostra que não tem o menor apreço pelas minorias e que quer implementar no Brasil uma ditadura das maiores como se nota em seu discurso.
Yahoo Notícias: Qual o projeto do PSOL para o tema reforma agrária?
Juliano Medeiros: Primeiro é importante ressaltar que todos os governos desde a redemocratização do Brasil –seja no governo Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer— apostaram no fortalecimento do agronegócio e na exportação de bens primários. Isso teve um impacto drástico no setor produtivo do país. O que faz com que hoje nós tenhamos a participação da indústria do Produto Interno Bruto (PIB) do país semelhante aos da década de 1920. E isso teve como impacto um processo de desindustrialização do país. E isso virou uma concentração de poder político e econômico do agronegócio. Não é possível pensar um projeto que desconsidere o agronegócio. É preciso pensar como esse setor econômico se insere em um projeto de nação altivo e soberano. Mas, nós do PSOL ainda acreditamos que é preciso sim tratar do tema da reforma agrária. Garantindo acesso à terra, mas também uma prioridade das políticas de fomento a agricultura familiar. A maior parte do alimento na mesa do brasileiro vem da agricultura familiar. Então temos uma atenção especial. Reconhecemos que o problema da reforma agrária não está mais nos mesmos termos da década de 1980 quando isso se converteu na maior bandeira da esquerda brasileira. Com a mecanização e a industrialização da produção agrícola e próprio MST reconhece isso. Mas, nós achamos que um governo que queira promover uma mudança profunda de prioridades terá que ter uma atenção especial para agricultura familiar e assentamentos da reforma agrária.
Yahoo Notícias: Recentemente tivemos dois exemplos distintos de racha partidário. O mais recente envolve a briga interna no PSL. Qual a avaliação que o senhor faz desse caso?
Juliano Medeiros: Isso só mostra que o PSL não é um projeto político. Ele é um amontoado de subcelebridades de extrema-direita que ganharam espaço nas redes sociais. Com gente mobilizada pelas paranoias comunistas e reacionários de toda ordem. Não me espanta que um projeto político tão frágil e tão limitado acabe em uma crise de grandes proporções. Não é nenhuma surpresa. A natureza das divergências tem pouco a ver com política. Tem a ver com o controle do fundo partidário. Não é uma surpresa essa crise. Espero que seja uma crise terminal já que o PSL não tem nenhuma contribuição relevante ao debate de ideia do Brasil.
Yahoo Notícias: O segundo caso envolve o PDT e PSB. Liderados pela deputada Tabata Amaral (PDT-SP) mais seis parlamentares decidiram entrar na justiça pelo mandato. Todos são envolvidos com organizações que o presidente do PDT chama de ‘partidos clandestinos’. Qual leitura o senhor faz desse episódio?
Juliano Medeiros: Primeiro que eu acho bastante positivo que tanto o PDT como o PSB tenham fechado questão em relação a Reforma da Previdência. Esse tema é muito sensível e que infelizmente não ganhou o debate público no Brasil. Pelos relatos que eu tenho esses partidos promoveram debates internos sobre a questão e esses deputados divergentes tiveram espaço para expor seus argumentos. Eu valorizo muito o papel dos partidos. Sou absolutamente contra a ideia de mandato avulso. Isso estimula um personalismo que enfraquece os projetos políticos e isso é muito negativo. Me parece que a direção do PDT e do PSB têm agido com correção. Garanto que se isso acontecesse no PSOL em um tema com essa dimensão nós trataríamos isso como algo muito grave. Eu realmente acho que o tratamento que o PDT e o PSB estão dando aos seus parlamentares é correto.
Yahoo Notícias: O senhor acredita que o que se vendeu como resultado econômico da Reforma da Previdência vai acontecer? O que se esperar quando o cidadão perceber que essa panaceia econômica pode não acontecer?
Juliano Medeiros: Primeiro que na nossa percepção a Reforma da Previdência tal como foi aprovada não vai resolver o problema fiscal brasileiro. O PSOL apresentou quatro emendas ao projeto da Reforma da Previdência. Nossa ideia era alavancar a arrecadação sem retirar direitos dos mais vulneráveis. Era possível desde o começo fazer um ajuste que não retirasse direitos. Não sei em que medida isso vai se reverter no debate público ou no eleitoral como um tema. É difícil ver isso agora. Ainda falta um ano para eleição. Mas, nós do PSOL iremos continuar promovendo o debate econômico. Vamos estimular seja nas eleições municipais e nos espaços que a gente pode esse debate sobre modelo econômico. O governo Bolsonaro se concentra em um modelo econômico ultraliberal que se concentra em retirada de direitos. Se o PSOL irá conseguir mostrar para a maioria da população o quanto é nocivo eu não sei. Mas, que essas medidas são incapazes de tirar o Brasil da crise eu tenho absoluta certeza. Assim como tenho certeza que o povo brasileiro irá perceber o quanto essa política negativa é nociva e vai extrair aprendizados disso. Tivemos no Equador um levante popular imprevisível que veio depois de medidas econômicas muito negativas. Se os ataques persistirem e as melhorias não vierem. E não virão. Acho que podemos nos preparar para um tipo de resposta seja nas ruas. Seja nas urnas… Isso não vai passar impune pelo povo brasileiro.
Yahoo Notícias: Alguns representantes –não todos—que se enquadram nesse rótulo de ‘nova política’ são contra o fundo eleitoral. Qual a posição do PSOL?
Juliano Medeiros: Esses partidos que se colocam contra o fundo partidário defendem a volta do financiamento privado. O que eles querem é que as empresas que financiavam os partidos voltem a ser os agentes de financiamento. Esses bancos e empreiteiras que corromperam a política brasileira voltem a financiar campanhas em troca de favores. O PSOL é radicalmente contra esse retrocesso. Essa posição contra o fundo público é demagógica e oportunista que flerta com essa crise política no país. Defendemos um fundo partidário mais modesto do que o que vem sendo praticado. Isso tem a ver com partidos políticos que não sabem mais fazer campanha com pouco dinheiro. Defendemos um fundo mais modesto, mas acreditamos que voltar ao que era antes é um retrocesso para política brasileira.
Yahoo Notícias: Em uma entrevista ao portal “Fórum”, o senhor revela que trabalhou muitos anos na Câmara dos Deputados e pode afirmar que o presidente Jair Bolsonaro era um vagabundo. Nos últimos dias o delegado Waldir –um correligionário de Bolsonaro—usou a mesma palavra para definir o presidente. Que contato o senhor tinha com ele nessa época?
Juliano Medeiros: A convivência que eu tive com Bolsonaro era a de plenário. Durante um período eu trabalhei na liderança do PSOL na Câmara dos Deputados. E o Bolsonaro era motivo de chacota por todos os deputados. De todos os partidos. Não era um sujeito levado a sério por absolutamente ninguém. Jamais o vi aprovando qualquer projeto. Era um sujeito que não gozava do respeito dos outros deputados. Vivia pulando de comissão e comissão para promover polêmicas inúteis para garantir algum nível de exposição. Ele vivia de factóides e estardalhaço permanente para garantir projeção. Sua produtividade como deputado era tão baixa que ele só conseguia se projetar publicamente polarizando e falando absurdos na tribuna. A imagem que eu tenho do Bolsonaro é exatamente essa. Um sujeito que não trabalhava e que tinha como único propósito criar polêmica.
Yahoo Notícias: Outro ponto criticado da gestão Bolsonaro é a política educacional. Recentemente dois parlamentares do Rio de Janeiro foram sem nenhum tipo de autorização prévia ao Colégio Pedro II no Rio de Janeiro. Que leitura o senhor faz dessa questão?
Juliano Medeiros: Primeiro que chamar o que o governo do Bolsonaro de ‘política educacional’ seria uma generosidade de nossa parte. Não acho que isso pode ser chamado de política educacional. O que está em curso no MEC é uma política de desmonte que visa priorizar o ensino privado de péssima qualidade no ensino superior e enfraquecer as instituições públicas que são responsáveis por 90% da produção cientifica no Brasil. É em primeiríssimo lugar mais um front do governo do Bolsonaro de ataque a soberania nacional. País que não faz produção cientifica é fraco internacionalmente. Quanto a ação do Daniel Silveira (PSL) e do Rodrigo Amorim (PSL) é um absurdo. Primeiro que não tem nenhuma eficiência. Se você quiser conferir se existe algum grau de doutrinação ideológica basta marcar uma reunião com os educadores responsáveis por essa escola. Em segundo lugar é que esse tipo de iniciativa está ligado à mesma forma de atuar politicamente do Bolsonaro. Os dois eram dois ilustres desconhecidos antes de quebrarem a placa com o nome da Marielle Franco. Dois sujeitos desqualificados politicamente. Eles não têm qualificação para estar no ambiente público. Para travar um embate de ideias. E eu não acho que isso seja um retrato fiel dos políticos de direita. Existem pessoas de direita capazes de travar o debate público. Eles se inscrevem nessa forma de fazer política baseada no estardalhaço e no barulho. É deplorável. Condenável. Absurdo o que eles fizeram, mas tem a lógica daqueles que querem aparecer a todo custo.
Yahoo Notícias: Como o PSOL enxerga a questão da apuração do poder público em relação a identificação dos assassinos da Marielle Franco?
Juliano Medeiros: O PSOL segue reivindicando a apuração e o julgamento dos acusados. Temos apenas duas pessoas acusadas e nem sequer condenadas. Isso já faz um ano e meio. E nesse um ano e meio não temos nenhum condenado. Isso de alguma forma expressa a leniência do judiciário brasileiro em chegar a resultados. Estamos convencidos de que Marielle foi vítima de um crime político. O crime pode até ter sido executado por milícias, mas acreditamos que existe por trás uma figura (ou algumas figuras) do mundo político. Sobre qual polícia deve investigar eu não vou comentar até por respeito a quem tem se dedicado a resolver esse crime, mas continuamos cobrando. Continuamos querendo resposta e exigindo que os dois acusados de cometer o crime sejam condenados e seus depoimentos tornados públicos.
Yahoo Notícias: Muito se fala de uma frente de esquerda para combater o conservadorismo. Alguns anos atrás o PSOL era visto como um partido de difícil composição. A legenda suavizou seus posicionamentos nos últimos anos? Ou foi a conjuntura política que se radicalizou?
Juliano Medeiros: O PSOL tem trabalhado ativamente pela unidade da oposição. Isso não significa suprimir ou ignorar as divergências que existem no campo da oposição, mas colocar em primeiro plano o interesse do povo brasileiro diante dos ataques promovidos pelo governo Bolsonaro. Nessa unidade, qualquer partido ou movimento social que esteja em oposição ao governo é bem-vindo. Essa unidade é fundamentalmente política, não necessariamente eleitoral. Sobre eleições nosso Diretório Nacional vai iniciar o debate no próximo dia 26. Estamos conscientes da nossa responsabilidade.
Yahoo Notícias: A eleição de 2018 produziu alguns governos com políticas de segurança pública com traços autoritários. O caso mais bem-acabado é o do Rio de Janeiro em que o governador proferiu frases como “atirar na cabecinha”. Esse discurso é apoiado por parte da população. Como desconstruir isso?
Juliano Medeiros: Nos últimos anos se estimulou a ideia de que o Brasil enfrentava dois problemas principais: a corrupção e a violência. Essa narrativa ganhou força e acabou impulsionando esse populismo de extrema-direita que se expressa no bolsonarismo e outros setores da velha direita. Enquanto isso, aquele que de fato é o principal problema do país, que a desigualdade, responsável pela crise social e a violência, fica em segundo plano. É, como eu disse antes, uma vitória ideológica dos nossos inimigos, que se aproveitam da hiper concentração dos meios de comunicação para difundir suas ideias e valores. Para desconstruir precisamos, pedagogicamente, demonstrar que além de mudar a concepção de segurança pública que vigora na imensa maioria dos estados brasileiros e em nível federal, precisamos colocar no centro do debate o tema da desigualdade. Isso pode levar anos, mas é tarefa que se inicia hoje.

