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JULIANO MEDEIROS: O PSOL e a revolução curda

Juliano Medeiros*

Nós reivindicamos uma nação democrática. Nós não fazemos oposição à unidade do Estado e da República. Nós aceitamos a república, sua estrutura unitária e seu caráter laico. Nós cremos, entretanto, que esta república deve ser redefinida com o objetivo de formar um estado democrático, um estado que respeite os direitos dos diferentes povos e culturas existentes em seu território. Sobre esta base, os curdos devem ser livres para organizar-se de tal maneira que sua língua e cultura possam ser exprimidas e que eles possam desenvolver-se nos planos econômico e ecológico.

Abddulah Öcalan

Em dezembro último estive com várias lideranças curdas em Bruxelas, na Bélgica. A convite do Congresso Nacional do Curdistão (KNK), representei o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) num produtivo dia de debates que nos permitiu conhecer a atual situação da luta do povo curdo por sua autodeterminação. A visita teve um significado ainda mais especial por ocorrer num momento em que os curdos lutam heroicamente em duas frentes: contra o Estado Islâmico, em sua fronteira sul (no território sírio), e contra a crescente repressão do governo turco, que deixou mais de 3 mil curdos mortos apenas em 2015.

Chegamos a Bruxelas numa manhã fria e chuvosa, após tomarmos o trem em Paris. Além de mim, representava o PSOL na viagem a jornalista Denise Simeão, dirigente do setorial de mulheres do partido. Fomos recebidos na Gare Midi, no centro de Bruxelas, pelo companheiro Ylmaz Orkan, membro do Comitê de Relações Internacionais do KNK e que havia esteve comigo no Brasil, meses antes. Ele nos levou até um palacete do século XVIII que abriga o KNK, localizado a algumas quadras dali. Por razões de segurança, o KNK não pode funcionar no Curdistão.

O Congresso Nacional Curdo reúne os 28 partidos curdos que atuam no Irã, Iraque, Síria e Turquia, países por onde se estende o Curdistão. Além de Ylmaz Orkan, estavam presentes Remzi Kartal, presidente do KNK; Zübeyir Aydar e Adem Uzun, membros do Conselho Executivo do KNK; Shirzad Kamangar, membro da direção do Partido da Vida Livre do Curdistão (PJAK); e Saleh Mohamed, co-presidente do Partido da União Democrática (PYD). Além deles esteve presentes também o companheiro Ozdal Ucer, ex-deputado do Partido Democrático e Popular (HDP), o fenômeno eleitoral que tem enfrentado o governo autoritário da Turquia e mantido uma importante representação parlamentar em apoio à causa do povo curdo naquele país.

Eles fizeram uma exposição da atual situação da revolução curda, lembrando que os curdos são hoje a maior etnia sem Estado do mundo (26,3 milhões de pessoas), espalhados por uma vasta região do Oriente Médio que engloba majoritariamente as fronteiras da Turquia, mas também do Iraque, do Irã, da Síria e da Armênia. Eles lembraram que desde meados do século XX ocorrem rebeliões curdas na Turquia e no Iraque com o objetivo de assegurar direitos ao povo curdo. Até que em 1984, sob o comando de Abdullah Öcalan, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) inicia sua luta armada contra a opressão do estado turco. A opressão do governo da Turquia é violentíssima e Öcalan é preso em 1999, sendo em seguida condenado à morte. Com a extinção da pena capital no país, três anos depois, ele tem sua sentença convertida em prisão perpétua.

Desde então, o PKK suspendeu suas atividades como demonstração de disposição para a construção de uma saída política para o conflito que já matou mais de 30 mil curdos. O governo turco, no entanto, mantém-se intransigente, assim como a maioria de seus vizinhos. Apenas o Iraque assegurou alguns direitos aos curdos, agora ameaçados pelo avanço do Estado Islâmico e pela falência do regime de Bashar Al Assad na vizinha Síria.

Os curdos ganharam enorme popularidade nos últimos meses graças à luta empreendida com o grupo fundamentalista sunita Estado Islâmico (EI). Enquanto potências como Rússia e Estados Unidos bombardeiam supostas bases do EI na Síria, são os curdos que travam os combates cidade a cidade. A defesa de Kobani, por exemplo, encantou o mundo, especialmente pelo engajamento das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), que contam com cerca de sete mil guerrilheiras. A cada dia, novas combatentes se graduam e ingressam nas unidades do exército curdo. Uma representante das mulheres do PKK esteve conosco em Bruxelas e falou sobre a centralidade que a luta pelos direitos das mulheres tem hoje na causa curda.

Não foi o único ponto de contato entre o PSOL e o PKK. Apesar de estar histórica e geograficamente vinculada ao Oriente Médio e, portanto, a outras tradições políticas e filosóficas, a esquerda curda tem conseguido forjar um projeto estratégico condizente com os desafios do século XXI. Hoje o PKK defende a consigna do “socialismo democrático” e não reivindica mais a criação de um Estado-Nação curdo. Sua proposta (hegemônica no âmbito do Congresso Nacional do Curdistão, pelo que pudemos perceber) é de estabelecimento de uma “autonomia democrática”. Essa autonomia permitiria aos curdos, mantendo-se no âmbito dos Estados-Nação atuais, construir o projeto do Confederalismo Democrático, forma de governo baseado em conselhos populares organizados em todas as regiões do Curdistão, independentemente do Estado.

Esse projeto, embora empolgante e inovador, encontra diferentes obstáculos. O primeiro, e talvez mais grave, seja a resistência dos Estados de abrirem mão de parte de sua autonomia em favor da auto-organização curda. No caso da Síria a situação é agravada pelo total desmantelamento do Estado sírio no norte do país. No caso da Turquia e do Irã, governos autoritários e fortemente inspirados num nacionalismo de conteúdo religioso, impede qualquer concessão ao povo curdo. Um dos participantes da reunião, Shirzad Kamangar, descreveu as condições desumanas a que estão submetidos os curdos no Irã, 7% da população do país, sem direito sequer ao próprio idioma. Outro obstáculo está na própria população curda, que ainda não compreende plenamente o sentido da proposta da autonomia democrática, como admite o próprio Öcalan num de seus escritos.

Outro participante da reunião, Ozdal Ucer, ex-deputado do Partido Democrático e Popular (HDP), destacou as dificuldades que os curdos têm enfrentado na Turquia com o fortalecimento das posições ultraconservadoras lideradas pelo presidente Recep Erdogan e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). Para ele, a Turquia continua sendo o principal terreno da luta dos curdos por seus direitos. A escalada autoritária, no entanto, parece estar longe do fim. Enquanto este relato é escrito, o governo de Erdogan volta a bombardear bairros civis em Diyarbakir e Silopi, deixando dezenas de mortos segundo informações do HDP. Os bombardeios, diz o governo de Erdogan, tem como alvo “guerrilheiros do PKK”…

O encontro com nossos companheiros curdos – que incluiu ainda uma visita às emissoras de TV mantidas pelos curdos em Bruxelas – foi muito esclarecedor. Além de reforçar nossos laços de solidariedade e apoio a umas das causas mais justas e belas do século XXI, serviu também para perceber o quanto essa realidade é ainda pouco difundida no Brasil. Enquanto as agências internacionais e as grandes emissoras de TV acompanham de perto o conflito palestino-israelense, ainda que com alto grau de manipulação e seletividade, pouco dizem sobre a situação dos curdos na Turquia, Iraque, Síria e Irã. Além disso, a aproximação diplomática e comercial entre Brasil e Turquia interditou qualquer iniciativa o governo brasileiro em relação à causa curda. Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, só entre 2009 e 2013, as trocas comerciais entre os dois países aumentou 108%. Aliás, foram os governos petistas – com Lula em 2009 e Dilma em 2011 – que realizaram as primeiras visitas oficiais ao governo e Ancara. Não há porque esperar, portanto, que Dilma compre essa briga.

Como resultado deste produtivo encontro, encaminhamos uma série de iniciativas, que envolvem desde a tradução para o português de obras que abordem a causa curda, até a presença em eventos promovidos pelo PSOL e pelo HDP – a começar pelo congresso deste, que o PSOL deve acompanhar em Ancara, na Turquia. De nossa parte, reafirmamos nosso compromisso com a causa curda, acreditando que a luta pode conquistar um futuro mais digno para todos os povos do mundo

Todo apoio e solidariedade ao povo curdo!
Socialismo e democracia no Curdistão!
Liberdade para Abdullah Öcalan!

*Membro da Executiva Nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

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